A Leishmaniose Visceral Canina (LVC), também conhecida como Calazar é uma zoonose causada por um protozoário do gênero Leishmania, que acomete os cães, os quais são considerados, no ciclo urbano de transmissão, os principais reservatórios, através do qual, o homem pode se infectar. A leishmaniose afeta cerca de 500.000 pessoas em todo o mundo, e tem havido um aumento dramático nos casos de leishmaniose humana reportados, e é potencialmente letal para os humanos, se não for tratada.
É transmitida através da picada de mosquitos flebotomídeos, principalmente do gênero Lutzomyia, entre os quais se destaca a espécie Lutzomyia longipalpis, conhecido popularmente, por mosquito-palha, birigui ou tatuquiras.
A classificação da leishmaniose pode gerar confusão, pois nos humanos é geralmente subdividida em três categorias: Leishmaniose Cutânea, Leishmaniose Muco-cutânea, e Leishmaniose Visceral.
A Leishmaniose Canina (LC) é classificada como uma Leishmaniose Visceral (LV), dado que o agente provoca a LV em humanos, contudo a síndrome observada em cães combina quase sempre a doença visceral e a cutânea em simultâneo. Os parasitas do gênero Leishmania são parasitas digenéticos que se desenvolvem como promastigotas no estômago de mosquitos flebótomos, e como amastigotas no citoplasma dos macrófagos dos hospedeiros vertebrados (Figura 1).
Figura 1. Ciclo biológico da Leishmania. Fonte: http://www.canalciencia.ibict.br/pesquisa/0295_A_caminho_da_cura_da_leishmaniose_visceral_canina.html
A manifestação clínica da LVC em cães é muito variável. Um cão infectado pode desenvolver infecção sintomática, e evoluir clinicamente até à morte, enquanto outro pode continuar assintomático, ou apenas desenvolver um ou mais sintomas leves, sendo então classificado como oligossintomático (subclínico).
O espectro clínico da LVC progressiva inclui linfoadenopatia (que é um sinal muito importante), epistaxe, anemia não regenerativa, diarreia, hepatoesplenomegalia, problemas de locomoção, conjuntivite, lesões oculares e lesões dermatológicas. Os sintomas como a caquexia, a atrofia muscular (mais notória na cabeça), e a perda de peso são devidos em grande parte à proteinúria, decorrente da disfunção gluomerular, como na glomerulonefrite membranoproliferativa, por deposição de imunecomplexos, ao nível da membrana basal do endotélio glomerular, que perde assim a capacidade de filtração. A doença evolui gerando síndrome nefrótica ou insuficiência renal crônica.
A hipoalbuminemia pode estar presente como resultado da perda de proteína, seja por doença hepática, seja por má nutrição ou alteração de mecanismos de equilíbrio osmótico.
As lesões oculares incluem blefarite associada à alopecia, seborreia, e dermatite facial; ceratoconjuntivite seca devido à ação destrutiva dos parasitas no aparelho lacrimal; conjuntivite granulomatosa refratária ao tratamento; ceratite; uveíte anterior mediada por imunecomplexos e associada a edema da córnea e glaucoma de ângulo fechado; esclerite, e hemorragia retiniana. Foi também observada iridociclite em cães em tratamento, considerando tratar-se de uma manifestação alérgica.
As lesões dermatológicas aparecem em 80% a 90% dos cães com LVC. Dentre as lesões cutâneas, encontra-se dermatite esfoliativa seca e generalizada, com escamas branco-prateadas como asbesto; alopecia principalmente na zona periocular, pregas de pele e articulações; anomalias de cornificação; seborreia seca; hiperqueratose; paroníquia; onicogrifose (unha semelhante à garra - devido a defeito de queratinização ao nível da matriz ungueal, sinal patognomônico da LC – Figura 2); dermatose (seborreia) do bordo da margem do pavilhão auricular, com hiperqueratose, associada à vasculite, que evoluem para úlceras e crostas (também verificadas nas zonas de proeminência óssea dos membros, devido à pressão de decúbito); ainda, encontram-se úlceras no focinho e ao nível da transição muco-cutânea dos lábios (estomatite ulcerativa – Figura 3), e da mucosa nasal, que com frequência é denunciada pela epistaxe, geralmente unilateral.
Figura 2. Onicogrifose. Canino. Figura 3. Úlceras em focinho e transição muco-cutânea. Fontes:
(Fig. 1) http://www.brumadonoticias.com.br/antigo/tag/leishmaniose-visceral/
(Fig. 2) https://www.qualittas.com.br/blog/index.php/cfmv-faz-alerta-sobre-o-tratamento-da-leishmaniose-visceral-canina/
Diagnóstico
A confirmação do diagnóstico da LVC pode se basear em métodos parasitológicos, sorológicos e moleculares. O diagnóstico parasitológico é considerado por alguns autores, um exame chave, onde se observa as formas amastigotas da Leishmania em esfregaços de linfonodos, medula óssea, aspirado esplênico, biópsia hepática e esfregaços sanguíneos corados com corantes de rotina, tais como Giemsa (Figura 4), Wright e Panótico. Ocasionalmente, também se observam parasitas em impressões citológicas obtidas abaixo de crostas e escamas cutâneas, ou através de aspiração de nódulos cutâneos. Ainda, é possível realizar biópsias cutâneas de áreas macroscopicamente normais, como na parte superior do focinho, por ser a área preferida dos vetores.
Figura 4. Esfregaços de medula óssea corado pelo método Giemsa, evidenciando macrófagos parasitados por formas amastigotas de Leishmania (setas vermelhas). Fontes: http://rmmg.org/artigo/detalhes/230
A imuno-histoquímica apresenta-se como um método sensível, específico e seguro para o diagnóstico parasitológico da LC, que vem sendo utilizada para a detecção de formas amastigotas de Leishmania sp em amostras de diversos tecidos (Figura 5).
Figura 5. Cortes histológicos do baço de cães infectados naturalmente com L. infantum chagasi. Presença de formas amastigotas na polpa vermelha (PV) (setas). (A) imunohistoquímica. (B) HE.
Fonte: http://revistas.bvs-vet.org.br/cab/article/view/25260/26127
Em muitos casos, especialmente, em animais assintomáticos, nos quais poucas formas amastigotas estão presentes, podem ocorrer resultados falso-negativos.
O diagnóstico sorológico se baseia na detecção de anticorpos anti-Leishmania circulantes. Os animais doentes desenvolvem resposta imune humoral e produzem altos títulos de IgG anti-Leishmania. A soroconversão ocorre aproximadamente três meses após a infecção e os títulos permanecem elevados por, pelo menos, dois anos. As técnicas sorológicas recomendadas atualmente pelo Ministério da Saúde para o inquérito canino são os TR-DPP® (Teste rápido DPP) e ELISA, sendo este último o teste padrão ouro. Proteínas recombinantes como a rk39 e rk26 têm sido utilizadas como antígenos para desenvolver vários testes rápidos imunocromatográficos comerciais, como também a utilização de proteínas A e G extraídas de bactérias para serem utilizadas como reagentes marcadores destes testes. Na nota técnica 01/2011, publicada pelo ministério da saúde, ficou estabelecido a substituição do antigo protocolo de diagnóstico da LVC pelo teste rápido imunocromatográfico (TRI) desenvolvido pela Biomanguinhos (DPPTM®), devendo este ser o teste de escolha para triagem dos animais e o de ELISA como teste confirmatório.
A RIFI ainda é o teste de eleição para ser utilizado em inquéritos epidemiológicos por reunir uma série de vantagens, como fácil execução, rapidez, baixo custo e sensibilidade e especificidade adequadas quando comparada a outras técnicas. O ELISA é recomendado para a triagem de cães sorologicamente negativos e a RIFI para confirmação de cães sororreagente ao teste de ELISA ou como uma técnica diagnóstica de rotina. Entre as principais desvantagens destes testes estão a incapacidade de detectar cães infectados antes da soroconversão e a possibilidade de ocorrer reações cruzadas com diversas outras enfermidades como, babesiose canina, erliquiose canina e infecção por Tripanossoma sp. Dentre os métodos moleculares, a reação em cadeia da polimerase (PCR e q-RT-PCR) tem se mostrado como importante ferramenta diagnóstica, demonstrando 100% de eficiência na detecção de Leishmania em cães sintomáticos.
Diagnóstico Diferencial
Muitas doenças devem ser consideradas no diagnóstico diferencial, uma vez que a apresentação clínica é também muito variável. A dermatite alopécica descamativa deve ser distinguida de sarna demodécica, desordens de queratinização, seborreia, adenite sebácea, e pioderma. As lesões ulcerativas devem ser diferenciadas de lúpus eritematoso, outras causas de vasculites, micoses profundas e tumores cutâneos. A poliartrite, glumerolonefrite, e lesões de pele por vasculite e úlceras são também observados no lúpus eritematoso sistêmico.
Diagnósticos diferenciais dos nódulos cutâneos podem ser os tumores cutâneos, granulomas estéreis ou infectados, ou dermatofibrose nodular. Qualquer doença pustular como pioderma, pênfigo foliáceo, sarna demodécica pustular, ou as pustuloses estéreis devem ser diferenciadas da Leishmaniose pustular. Diante de sinais sistêmicos, devem-se considerar outras infecções, como a erliquiose.
A linfoadenopatia deve ser diferenciada de doenças linfoproliferativas, como o linfoma. O diagnóstico diferencial inclui, ainda, a Dermatose reativa ao Zinco (Zinc-responsive dermatosis), Eritema Migratório Necrolítico, além do fato que os animais dos podem ter outras doenças concomitantes, pois a diminuição da resposta imune celular predispõe a doenças como a sarna demodécica, a dermatofitose e hemoparasitas.
Tratamento
Desde 2013 o tratamento contra a leishmaniose visceral em cães foi autorizado no país, após decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) em um processo sobre o assunto. Em 2016, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), autorizou que fosse utilizado no Brasil como método terapêutico para os animais com a doença, um medicamento que já era comercializado com esse fim na Europa. O Milteforan® é o único produto aprovado para uso veterinário no Brasil, tem como princípio ativo a Miltefosina e é aplicado por via oral (Figura 6). A leishmaniose canina é mais resistente ao tratamento do que a leishmaniose humana; apenas alguns animais são considerados totalmente curados e as recidivas são frequentes.
Com a mudança no Código Sanitário, os proprietários que tiverem seus cães com o diagnóstico da leishmaniose e optarem pelo tratamento, deverão comunicar a Coordenadoria de Combate a Zoonoses por meio de um protocolo. O tratamento de animais será aceito pelo órgão sanitário se for realizado com a supervisão de um médico veterinário e com o uso de medicamentos autorizados pelos ministérios da Saúde e/ou da Agricultura, Pecuária e Abastecimento.
Figura 6. Leishmaniose antes e após o tratamento.
Fonte: http://www.atualizei.com/16053-diferenca-entre-leishmaniose-visceral-e-leishmaniose-tegumentar-sintomas-e-tratamentos/
A forma mais eficaz de combater a doença seria o controle do mosquito palha, responsável pela transmissão. O princípio básico para a prevenção da LVC é evitar o contato entre o vetor infectado e o cão. Dessa forma, medidas contra o vetor devem ser adotadas no ambiente e centradas no cão. As medidas direcionadas aos cães parecem ser as mais adequadas nos grandes centros urbanos e incluem: uso de coleira impregnada com deltametrina 4%, a qual deve ser substituída a cada seis meses; em cães alérgicos à coleira, uso de inseticidas de aplicação tópica à base de permetrina; cuidados de limpeza do ambiente, como retirada de matéria orgânica excessiva; aplicação de inseticidas ambientais centrados nos canis (ambientes em que o animal permanece por mais tempo), à base de deltametrina e cipermetrina, em aplicações semestrais; uso de plantas repelentes de insetos, como a citronela; e, evitar passeios crepusculares ou noturnos, horários de maior atividade dos mosquitos, privilegiando os passeios diurnos. Dentre todas as medidas profiláticas, a mais efetiva é a utilização de coleiras impregnadas com deltametrina que é recomendada pela Organização Mundial da Saúde.
Outra forma de proteger os canídeos da leishmaniose é por meio da imunoprofilaxia. A vacinação deve ser precedida de exame sorológico para determinar se o cão tem a doença por teste rápido imunocromatográfico. Em estudos sobre o tratamento para Leishmaniose visceral canina foram relatadas a utilização das Vacinas Leishmune® contra a LVC, já aprovada pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) e uma nova vacina, a Leish-Tec®, produzida pela HertapeCalier, em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). A Leish-Tech® induz resposta imune protetora contra a infecção por L. donovani, L. amazonensis e L. chagasi. Ao ser realizado os testes de rotina como RIFI ou ELISA, os animais vacinados mantêm a sorologia negativa.
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